L’Ape musicale

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de Fabiana Crepaldi

BADEN BADEN 26 de março de 2024. Se originalmente a tragédia Elektra é bem grega, a ópera de 1909 que marca a estreia da frutífera parceria entre Richard Strauss (1864-1949) e Hugo von Hofmannsthal (1874-1929) é bem austríaca. Embora a ação se passe na mesma Micenas de Sófocles, e haja, grosso modo, uma correspondência entre as cenas das Elektras de Hofmannsthal e Sófocles, as situações são diversas, e os diálogos, significativamente diferentes. Em sua Elektra, que estreou como peça de teatro em 1903, Hofmannsthal transporta a obra de Sófocles para as crises da sociedade patriarcal vienense do fin-de-siècle: uma sociedade marcada por uma crescente misoginia e pelo início da psicanálise.

Em seu interessante artigo Fin-de-siecle fantasies: Elektra, Degeneration and Sexual Science (Cambridge Opera Journal, 1993), Lawrence Kramer aponta que há uma dupla leitura em Elektra, o que, para ele, “representa uma complexa negociação com a misoginia da cultura supremacista. Privilegiando a subjetividade de Elektra, Strauss vai contra o cerne da cultura supremacista, que nega a legitimidade das mulheres (…) como sujeitos individuais. Por outro lado, sua caracterização de Elektra reproduz todos os traços de primitivismo — animalidade, impureza, sensualidade cruel, perversidade erótica, amoralidade, automatismo — rotineiramente atribuídos às mulheres para justificar sua negação”.

Quanto aos ecos da psicanálise, é interessante observar que o caráter da Elektra de Hofmannsthal é diferente daquele da apresentado por Sófocles. Na tragédia grega, Elektra busca a vingança da morte do pai para que a justiça seja feita e a família possa se libertar do crime cometido por sua mãe. Em Hofmannsthal, ela é obcecada pela ideia de vingar a morte do pai, Agamemnon, e matar os seus assassinos: Clitemnestra, sua mãe, e Egisto. Na Elektra de Hofmannsthal, podem ser reconhecidos casos clínicos discutidos por Sigmund Freud e Joseph Breuer em Estudos sobre a Histeria (1893), que integrava a biblioteca de Hofmannsthal.

O diálogo entre Elektra e sua mãe, Clitemnestra, é uma verdadeira sessão de psicanálise. No princípio, Clitemnestra vai ter com Elektra como quem vai ao psiquiatra. “Ela fala como um médico”, observa a mãe quando toma a resolução de ir falar com a filha. Clitemnestra tem seus traumas e bloqueios – “Isso me soa tão familiar. É simplesmente como se eu tivesse esquecido há muito, muito tempo”. Em seu encontro com Elektra, vai em busca de um meio de acabar com os seus pesadelos, como o de estar sendo estrangulada por Orestes. Um de seus sonhos recentes era que estava sendo estrangulada por Orestes. A mãe procura, através da filha, obter uma solução para os seus sofrimentos.

Em Sófocles a situação é bem diferente. Clitemnestra havia, de fato, tido um sonho, mas o de que Agamemnon havia ressuscitado. Em seu diálogo com Elektra, nem menciona o sonho. Não há traumas ou sentimento de culpa: a Clitemnestra grega se defende: matara Agamemnon como vingança por ele ter oferecido uma das filhas do casal, Ifigênia, em sacrifício para poder ajudar seu irmão Menelau em Troia. Essa justificativa nem é citada na ópera, onde a culpa de Clitemnestra é incontestável.

Michaela Schuster (Clitemnestra), Elza van der Heever (Crisóstemis) e Nina Stemme (Elektra) – foto de Monika Rittershaus

Na Festspielhaus de Baden-Baden, os diretores cênicos Philipp Stölzl (que também foi responsável pela cenografia e pela iluminação) e Philipp M. Krenn criaram um cenário funcional e abstrato para deslocar a trama da Grécia clássica ao ambiente psicanalítico. Ou, como escreveu Stölzl no programa de sala, optaram “por uma solução focada, que direciona uma lente de aumento para os personagens e seus sentimentos”.

Opressor, perigoso, íngreme, o cenário era constituído por uma escada enorme com degraus grandes e móveis. O deslocamento desses degraus permitia que a escada se transformasse ora em um muro, ora em ambientes distintos, que separavam verticalmente e confinavam os personagens, ora em ambientes que oprimiam, que não permitiam que os cantores ficassem de pé. Esse teto que oprime, que esmaga, foi utilizado, por exemplo, quando Elektra recebeu a notícia da morte de Orestes e em seu segundo dueto com Crisóstemis. Qualquer que fosse a configuração do cenário, no entanto, a tensão e o perigo estavam sempre presentes – estavam todos literalmente à beira do precipício, qualquer passo em falso poderia ser fatal. “Cada movimento nele pode ser arriscado – a natureza inquietante desse palco íngreme faz parte do conceito”, explica Stölzl.

Além do perigo iminente, os encenadores salientaram o valor da bagagem literária do texto por meio da projeção do libreto no cenário. “’Elektra’ não foi escrita para a ópera. Hofmannstahl escreveu a peça para o palco falado – há diálogos, monólogos, mas não a ária clássica, ‘stretta’ ou dueto como na ópera. A estrutura tem muitas referências à tragédia grega, às próprias origens do teatro. (…) Achamos que valia a pena experimentar se as incríveis imagens linguísticas de Hofmannsthal poderiam ser colocadas mais fortemente no centro da apresentação”, explicou Stölzl no programa.

Não eram projeções ordenadas, mas frases cujas fontes variavam em cor e tamanho, no estilo das projeções de William Kentridge em sua produção de O Nariz, de Shostakoritch, apresentada no Metropolitan Opera. A grande diferença é que Stölzl projetou o original de Elektra, em alemão, enquanto Kentridge, por razões de ordem prática, utilizou a tradução em inglês (e não o texto em russo).

Os figurinos de Kathia Maurer eram basicamente pretos, mas todos com ornamentos que os diferenciavam e coloriam. Em Orestes, destacava-se a perna quebrada, bege; em Crisóstemis, uma espécie de lenço branco colegial; em Clitemnestra, os longos cabelos brancos; em Elektra, a peruca laranja; nas criadas, aventais brancos.

As cinco criadas e Nina Stemme (Elektra) – foto de Monika Rittershaus

Desde a primeira cena, quando as criadas estão conversando a respeito Elektra, já era perceptível que o cuidado na escolha do elenco contemplava, também, os comprimários. Katharina Magiera, Marvic Monreal, Alexandra Ionis, Dorothea Herbert e Lauren Fagan foram cinco criadas com vozes bem colocadas e bem projetadas.

Dentre o elenco principal, a soprano Elza van den Heever e a mezzosoprano Michaela Schuster já haviam feito parte, no ano passado, do elenco de alto nível de Die Frau ohne Schatten no mesmo festival. Naquela oportunidade, van den Heever brilhou como a imperatriz em busca de uma sombra e Schuster demonstrou, como a ama, os seus dotes cênicos, apesar de uma voz carente de peso nos médios e graves. Neste ano, como Clitemnestra, o poder dramático de Schuster ganhou até mais intensidade, a sua personagem foi muito bem construída, seu fraseado foi inteligente. Sua voz, contudo, mais uma vez apresentou carência nos graves e médios, de modo que ela fez uso de um som gutural, de um ronco mesmo, para que seus graves fossem ouvidos. Se, por um lado, faz sentido uma Clitemnestra com uma voz áspera, que emite sons feios e ferinos, que demonstra angústia e as suas fraquezas com a voz, por outro lado o canto perde peso, e a caracterização da personagem perde profundidade quando os graves não têm consistência.

Michaela Schuster (Clitemnestra) – foto de Monika Rittershaus

Ainda sobre Clitemnestra, vale observar que ela foi retratada com longos cabelos brancos e rodeada pelas suas serviçais. Elas a bajulavam, acariciavam, de forma sensual. Stölzl, Krenn e Schuster foram muito felizes na construção dessa personagem que tenta demonstrar poder e força, mas, na realidade, é fraca, insegura, suscetível, sugestionável. Quando Clitemnestra morre, uma dublê rola escada abaixo, elevando ao máximo a tensão e o perigo iminente da cena.

Elza van den Heever (Crisóstemis) – foto de Monika Rittershaus

A Crisóstemis de Elza van den Heever apareceu caracterizada como uma jovem aparentemente ingênua. A soprano ofereceu agudos penetrantes, mas os seus graves não conseguiram transpor a barreira orquestral. Apesar disso, foi memorável a sua interpretação de Kinder will ich haben, quando diz a Elektra que quer ter filhos antes que o seu corpo murche. Van den Heever cantou esse trecho de uma forma dramática, sofrida: uma Crisóstemis plenamente consciente do quão distante estava do êxtase, presente na música, que lhe provocaria a realização do seu sonho.

Os homens aparecem apenas quando a ópera está se aproximando do final. Orestes chegou com a perna engessada, de muleta – sim, pela escada! Ferido na batalha? O que importa é que arrasta as feridas da vida. Já Egisto, que chegou pedindo luz, teve a sua presença quase ofuscada por algumas lanternas. Os papéis foram interpretados de forma bastante convincente, respectivamente, pelo baixo-barítono dinamarquês Johan Reuter e pelo tenor austríaco Wolfgang Ablinger-Sperrhacke.

Nina Stemme (Elektra) e Johan Reuter (Orestes) – foto de Monika Rittershaus

Sem dúvida, o grande nome, ou, mais que isso, a grande voz que brotou do enorme palco foi a de Nina Stemme. Muito se fala dos seus agudos já por vezes ásperos, da sua voz que, em alguns momentos, falha. Nada disso importa. Stemme, que anunciou que essa seria a sua última Elektra, despediu-se do papel de forma mais que digna: memorável.

Nina Stemme (Elektra) – foto de Monika Rittershaus

A movimentação cênica nunca foi o foco dessa grande artista, que tem a rara capacidade de transmitir uma intensa dramaticidade através da expressividade da sua poderosa e penetrante voz. Stemme consegue criar uma personagem com toda a profundidade através do canto – um canto cheio de nuances, de vida. Sua voz quente combinou perfeitamente com a peruca laranja incandescente que estava usando e com o figurino preto desfiado, que a transformou em uma espécie de pássaro – um pássaro selvagem aprisionado. Ela deu vida e voz a uma Elektra com personalidade forte, essa Elektra que não dá espaço a qualquer ambiguidade, que tem um objetivo fixo e imutável, que tem os seus momentos de ternura, mas também os de fúria. Em sua Elektra, a subjetividade da personagem, fortalecida pela música e pelo canto, prevalece sobre os traços misóginos do libreto. No impactante monólogo Allein! Weh, ganz allein!, em que Elektra se dirige a Agamemnon, o pai assassinado, Stemme demonstrou o cuidado que tem com o texto. Foi, sem dúvida, o momento em que mais fez sentido a projeção do libreto no cenário.

Nina Stemme não poderia ter tido companhia melhor, no fosso, para se despedir desse papel tão marcante em sua carreira: Kirill Petrenko e a Filarmônica de Berlim. Esses dois nomes tornaram, nos últimos anos, Baden-Baden um destino obrigatório para aqueles que querem ver uma ópera executada com o máximo de refinamento e cuidado orquestral. Isso até o ano que vem, quando a ópera executada será Madama Butterfly, de Puccini, com Eleonora Buratto no papel-título. A partir de 2026, Petrenko e a Berliner passarão a se apresentar no Festival de Páscoa de Salzburg. Em Baden-Baden, teremos a Orquestra Real do Concertgebouw e a Mahler Chamber Orchestra. Será um duelo de titãs.

Em Elektra a enorme orquestra tem um importante protagonismo: é sobretudo por meio dela que nos vem a irresistível música de Richard Strauss. Do fosso da Festspielhaus brotou um som predominantemente poderoso, forte, mas sem negligenciar um único detalhe e com a impressionante homogeneidade da Filarmônica de Berlim. Uma barreira sonora poderosa, mas permeável às vozes dos cantores, sobretudo à voz de Stemme. Ao som poderoso – mas jamais estridente, jamais barulhento ou gritado – contrastaram momentos de lirismo camerístico e até o silêncio da profunda pausa bem-marcada que precedeu o monólogo de Elektra. Petrenko e a Filarmônica de Berlim foram aplaudidos de pé (atitude que, na Europa, não é banalizada como no Brasil).


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